domingo, 8 de julho de 2018

QUEM É JARINA?



Domingo, mesmo ritual desde cedo, com o fim da tarde ela estava no seu local, seu sofá e seus cães. Levantou, pegou o incenso mais cheiroso e o acendeu, com seu isqueiro laranja, esse que ela mantinha escondido, fez tudo isso em uma velocidade extraordinariamente lenta. Ela se levantou do seu sofá e ao se levantar, seus cachorros a seguiram, eles a seguiam por onde ela ia.

Incenso de cravo e canela que em pouco tempo, envolveu toda a casa no seu perfume. Para você repensar essa cena, dela se levantando e ascendendo e incenso, é preciso diminuir a velocidade da sua mente e entregá-la a poesia, que é uma mistura popular com emoção diluída.

Ela voltou para a seu canto favorito do sofá, encarou por um momento o mundo que via pela televisão, fez anotações mentais para ter assunto para a semana, lembrou do fim de semana, passou um momento registrando tudo. Desligou a televisão. Silêncio total, na rua, na casa e na sua mente e assim, veio a pergunta, quem às vezes assombrava nesses dias de domingo, nos dias de seu ritual.

Quem é Jarina? Foi o que ela se perguntou mentalmente e acendeu um cigarro. O silêncio se cansou dela e então, sozinha começou a dizer algumas palavras, com quem ela falava? Talvez com seus demônios, anjos, solidões. O cigarro acabou, está tentando diminuir, desde que descobriu uma Enfisema Pulmonar, que lhe causava fortes faltas de ar.

Pensou em ouvir uma música, a dúvida era se seria Alcione, já que nos seus questionamentos dessa semana, ela se perguntava se deveria deixar de gostar dela. Por que? Nem ela sabe explicar. Colocou Alcione, sabia usar o youtube da televisão, era sua independência musical.

Agora era a Marrom, a estrela maior, ela cantava agora na televisão, o volume aumentava, era tudo alto e grande, deveria ser assim, um minuto de vida por segundo. Ao seu lado, em um banco, um copo de cerveja pela metade, quente pelo esquecimento. Mais uma vez, a solidão da vida pesou, então, levantou e pegou mais um pouco na geladeira - não era Kaiser, era Skol teve que trocar de marca por que o litrão era mais barato, escolhas sem opções. Se levantou lentamente, olhando diretamente toda a casa, agora vazia, somente os latidos atrapalhados dos cachorros preenchiam os vazios e espantando fantasmas nos cantos. Ela foi, encheu o copo lentamente, admirando a sua habilidade de encher sem fazer espuma, andando calma, serena e confiante voltou para a sua sala.

Lembrou da pergunta, quem era Jarina? No dicionário jarina" [Do tupi.] Substantivo feminino.

1. Bras. Bot. Pequena palmeira nativa da América do Sul também conhecida pelo nome de jarina.. [Sin.: marfim-vegetal.]. A questão não era respondida, perguntou de novo, lembrou Rainha do Carnaval Santista, a crooner Jarina Rezende. A resposta não estava ali ainda.


Então, calmamente, pegou mais um cigarro, acendeu e pediu aos orixás proteção e paz. Pensou um pouco em toda a história até chegar na casa, no sofá, no cachorro, na Alcione cantando na televisão, no domingo, na cerveja, traçou uma trilha imaginária de quem ela poderia ser, navegou por essa trilha em uma velocidade lenta, pois gostava de admirar os bons feitos de uma enorme vida. O transe passou, Alcione cantava a "A loba" diretamente para ela, como em um show particular, ela e Alcione fizeram um dueto, o silêncio ainda pairava no ar, em forma de proteção. Logo depois foi o gole de cerveja, a boca estava aguada, bebeu e refez o caminho da segunda-feira, que era limpar a casa, se preparar para o trabalho na quinta, cozinhar e quem sabe ver algum bom filme na televisão, o que andava difícil, ainda mantinha a novela para ter conversa pra jogar fora.

Ela ali quieta e submersa no seu mundo, onde a violência era tão comum quanto o amor, pensou Quem era Jarina? Não era a sambista, não era planta, o que era então? Rebuscou então suas caveiras em seu cemitério, refez histórias... Apanhou do marido, apanhou da mãe, do pai, dos irmãos, da vida, apanhar era algo que ela entendia, vendida pela mãe e abusada psicologicamente pela vida, frágil e sozinha "- Frágil porra nenhuma, forte demais! É nois!" gritou que ouviu nos trilhos da história, mas chorou duas lágrimas. O incenso acabou, decidiu que então ia acender outro, por sugestão da sua Sete Saias, a sua fiel amiga que a nunca abandonou nessa imersão chamada solidão.

Mais uma vez, lentamente, acendeu outro incenso, dessa vez o de Nossa Senhora Desatadora de Nós, o cheiro era bom, voltou ao sofá e sentou dessa vez com uma perna sobre a outra e rodeada dos cachorros. Jarina não era aquela, respirou fundo três vezes, assim como vocês devem fazer para entender quem realmente poderia ser Jarina. O cigarro não era mais Hollywood Vermelho, estava caro demais, com passar do tempo foi se adaptando e se privando de prazeres, acendeu outro cigarro de marca duvidosa, quase acabando esse cigarro, foi pegar o último gole de cerveja. Bebeu demais de novo, não precisava dizer.

Quieta, em silêncio, no canto mais desconfortável do sofá, se perguntou a última vez quem era Jarina? Marginalizada. Mal ela sabia o que era essa palavra. Marginalizada por não suportar a dor que é de viver. Tomou sua cerveja, sentiu o peso da vida. Nem a voz da sua pomba gira ela poderia ouvir. Respirou. Suplicou pelo o ar não faltar. Pensou em quem era Jarina? Nada. Jarina, pensou ela... poderia ser qualquer uma, que há anos é marginalizada... Poderia ser Cira, Márcia Priscila, Madalena, Maria, Miriam, Marina, Rosane, Antônia, Joana e tantas mulheres que foram violentadas por primos, pais e maridos, outras mulheres que passaram fome e comeram restos, que não tinha casa, quarto, lugar... que foi escravizada desde sempre e até hoje não tem liberdade, que tiveram que descobrir sozinhas o que era o "amor", que diz que não perdoa mas que o que mais faz é perdoar.

Com tantos nós, deu fome. Aos domingos ela só iria comer no fim do dia, ela e seus cachorros, comeu algo, dividiu com os animais. Respirou fundo, agradeceu por ter casa, comida e força para continuar trabalhando.Quase fechando os olhos, segurando firme o prato de comida vazio, ela então pensou que só gostaria de tomar sua cervejinha e poder continuar com a vida,

Quem é Jarina? Ela não soube responder. Inconsciente disse que era mãe, era. Disse que era avó, era. Então disse que um dia foi esposa, foi. Disse que era a melhor manicure, era, Disse que era a Já, era. Disse que era amada, era. Disse que era compreendida, não. Então disse que era... e fechou os olhos no sofá, amanhã é dia novo... quem é Jarina?

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